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TEXTOS SELECIONADOS

“O contraste da cidade. De um lado a beleza, a riqueza, o cartão postal. Do outro, a maior parte da população que circula e sustenta todo esse glamour. Do questionamento de andar pelas ruas do Rio de Janeiro, o fotógrafo quilombola Joelington Rios conseguiu captar através de sua lente, de forma poética e política, as nuances que fazem da capital fluminense um dos lugares mais desiguais entre as frações sociais.

Natural do Maranhão, Joelington construiu seu imaginário do Rio através das belas imagens de sua natureza, da orla pomposa da Zona Sul etc. Porém, em sua imersão enquanto morador da cidade, desfez a ideia inicial. Ao andar atentamente pelas ruas, principalmente, pelas vias das áreas centrais da cidade, pode perceber todo um sistema marginal que dá sustentação à cidade maravilhosa. A ideia de um Rio perfeito entrou em choque com a realidade concreta.

A série “O que sustenta o Rio” nasce desse contato, dessa experiência de corpo que se desloca e observa o que está ao redor. As fotos são como crônicas de uma cidade que ora vive de sua aparente estabilidade e paz e ora é sacudida pelas questões sociais inerentes a esse sistema que privilegia poucos em detrimento de muitos.

Rafael Lopes, jornalista e fotógrafo.

Nascido no quilombo de Jamary dos Pretos em Turiaçu no Maranhão, Joelington Rios deixou seu vilarejo e veio diretamente para o Rio em 2017. “Vim diretamente para o Rio e sempre morei no Quilombo. Meus pais são lavradores, ambos trabalham na roça, plantam, colhem, e tiram deste processo todo o sustento da família. Meu pai, além de lavrador, é vaqueiro.”[1] Na memória da origem, em foto-reportagem por celular, Joelington Rios registrou o regozijo comunitário no “meu Quilombo” pela eleição de Rafael Ribeiro para o cargo de vereador. De sua produção, uma enternecedora cena de afeto e registro cultural em Jamary dos Pretos (2016) apresenta duas senhoras (“minha parteira e minha professora”) numa horta medicinal, no quintal da casa da dona Maria. São cenas auto-biográficas de um artista quilombola.

Quando decidiu morar no Rio, trazia ilusões vinculadas à natureza, ao charme da Zona Sul, a seus grandes personagens e à força simbólica da cidade. Desde 2018, o roteiro para elaborar sua série O que sustenta o Rio, pressupõe uma deambulação pela cidade em estado de questionamento, entre deriva e errância para demonstrar os desafios de viver na cidade. A série O que sustenta o Rio nasce do contato e da “experiência de corpo que se desloca e observa o que está ao redor,” escreveu Rafael Lopes em texto elucidativo, que as imagens de Rios “crônicas de uma cidade que ora vive de sua aparente estabilidade e paz e ora é sacudida pelas questões sociais inerentes a esse sistema que privilegia poucos em detrimento de muitos.” Por fotomontagem em preto e branco, Rios sobrepõe e ajusta graficamente a imagem do Redentor à cabeça de pessoas retratadas, quase anônimas, em situações ordinárias, como emblema de pertencimento à cidade do amor e das fricções. Para Joelington Rios, viver o Rio foi a experiência radical de descoberta transformadora de seu olhar sobre o centro, os subúrbios, as favelas, as praias como contrastes, asperezas, embates, exclusão. Para o dito “fotógrafo quilombola” o Rio ideal, a Cidade maravilhosa, colide com a crise estrutural de grandes segmentos da população, o apartheid social gritante, a vida nua, a realidade frictiva da marginalidade social. O Rio de Janeiro tem uma avançada antropologia urbana crítica de sua situação urbanística que espelha a estrutura sócioeconômica que divide a cidade entre morro e asfalto, por ordenamentos de classes sociais, bairros e grupos sociais. A interação se dá pelo trabalho e pela praia, por exemplo. O termo a cidade partida se disseminou em 1994 com o livro de Zuenir Ventura, malgrado tudo a cidade não deixa de ser amada e cantada, para o bem e para o mal, pois seus moradores, como os personagens de Joelington Rios trazem o Rio na cabeça. É o Rio de Rios.

Paulo Herkenhoff
Curador e crítico de arte. Atuou como diretor cultural do Museu de Arte do Rio – MAR (2013-2016), diretor do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (2003-2006), curador adjunto no departamento de pintura e escultura do Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA (1999-2002), consultor da IX Documenta Kassel, na Alemanha (1991), curador chefe do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-Rio (1985-1999) e curador da 24a Bienal Internacional de Arte de São Paulo (1998).

O ensaio “O que sustenta o Rio” é um trabalho autêntico. Bonito e emocionante. Duro e puro. A importância, a força e a dignidade do alicerce humano estão ali, pavimento do solo onde será erguida a imagem glamourosa da cidade. Simples e maravilhosamente didático, como um corte transversal profundo, o autor escancara o subsolo social da pirâmide nacional.

Hans Georg, fotógrafo, criador e produtor do Foto Escambo.

O Que Sustenta o Rio – Joelington Rios

“Quando lemos os livros de Virginia Woolf temos uma sensação constante de migrar entre mundos metafísicos apresentados como mundos físicos extraídos da memória da personagem principal. Assim é que a senhora Ramsay fica fluindo seu pensamento – em off – entre a ação de costurar uma meia e as conversas hipotéticas que pode ter tido a respeito de assuntos outros em tempos passados, ou na sua reflexão interna sobre os sons que sucedem das diversas camadas de sua casa de praia. Ficamos num entre mundos que pertence a uma única pessoa, e isso revela o quanto somos complexos. Quando olhamos as fotografias de Joelington Rios, hoje expostas nas janelas de um sobrado da Rua do Mercado, ficamos pensando nessas camadas que visualmente ele conquistou, e que, no passado, a literatura de Woolf buscava permanentemente. Se escrever é desenhar com letras, a cada imagem afixada no vidro por Rios temos um impacto linguístico que nos faz pensar que pode ser um avesso: fotografar aqui é um escrever com imagens.

Cada fotografia tem dois mundos que pertencem um ao outro: acima, uma imagem do Rio enquanto cidade maravilhosamente divulgada – o Corcovado, o Bondinho, o Pão de Açúcar – e, embaixo, um retrato de algum cidadão silenciado de uma cidade não tão maravilhosa, mas que mantém viva a dinâmica da primeira. O contato de ambas nasce como um oximoro: duas palavras que divergem de si para criar uma vibração que realça o significado da expressão.

Joelington é do Maranhão, nasceu e cresceu no Quilombo Jamary dos Pretos, em Turiaçu, veio para o Rio de Janeiro há pouco. Fica claro que ele teve a sensibilidade de notar algo que só nota quem está de fora. Os circundantes à senhora Ramsay não entendem o quanto existe de vibrante a sua volta, somente ela, na sua complexa condição e sensibilidade, vê além daquilo que se apalpa. Joelington tem essa mesma sensibilidade que consegue traduzir a complexidade de relações irrigadas numa cidade que nega a se compreender naquilo que seu contraste faz vibrar: aqui cada vez mais o outro não importa.

O que me faz pensar em Kafka e Adorno, ambos autores alemães, que buscavam usar desse contraste nas suas obras, e demonstrar como só dele pode despertar nossa mente alienada na reprodução técnica manipulada pelo sistema de interesses privados; para além da autopreservação. O que Rios faz é sustentar um mundo que está ali para todos verem, mas que somente se revela quando o recebemos num contraste claro, pois que estamos exclusivamente tomados pelo que tateamos assim como os personagens que beiram a senhora Ramsay. Onde cada um sabe de si, Rios joga a alteridade perdida na cara.

Podemos enxergar e não só olhar: é isso que a obra do artista importa para nós. O Que Sustenta o Rio consegue em oito fotografias devolver ao Rio a compreensão da sua totalidade sem recorrer a uma explicação dada; o que é raro nesses dias de cachoeiras de mídias em que somos inseridos. A nossa sorte é que o trabalho circulou por toda a periferia da cidade e agora apresenta-se em seu centro, como se catalisasse esse encontro com a conjunto de um Rio de Janeiro que pouco apalpamos cotidianamente.”

Gui Martins Pinheiro
Crítico, pesquisador, curador de Arte, mestre das Artes pela SVA-NY e mestre das ciências pela NYU.

https://www.abapira.art/joelington-rios-o-que-sustenta-o-ri 

Uma vez, participando de um colóquio de fotografia, com a fotógrafa Marcela Bomfim, conversávamos sobre representatividade negra. Muito feliz, compartilhava com ela meu sentimento de participar pela primeira vez de um colóquio em um espaço acadêmico, em sua companhia; das possibilidades e caminhos que a fotografia pode nos permitir seguir e trilhar. Falei também sobre meu encontro com a fotografia ainda aos 14 anos, quando uma única imagem minha, de criança, publicada no fotolivro Terras de Preto: Mocambos, Quilombos: Histórias de Nove Comunidades Negras Rurais do Brasil, do fotógrafo Ricardo Teles, me fez sentir o desejo de construir e ressignificar histórias, começando pela minha e pela do meu povo quilombola. Nesse dia, Marcela me falou algo que ficou muito presente na minha mente e na minha caminhada na fotografia e na arte: “Você começou a fotografar quando se viu”.

Pensar na fotografia negra é ir ao encontro desse (re)conhecimento por meio da imagem, essa que sempre se fez presente aqui, fortificada desde muito cedo pelos nossos através da oralidade, das histórias ouvidas pelos nossos pais e avós quando crianças. Além disso, é pensar sobre os processos de apagamentos, fragmentações e invisibilidade ainda vigentes, dados em uma fotografia colonial que continua tentando esconder a obscenidade do desejo de capturar e dominar territorialmente o espaço e suas gentes, sobretudo corpos negros, explorando-os quanto mais suas falo-lentes possam alcançar, perpetuando histórias únicas e estereotipadas.

A fotografia negra nos coloca em encruzilhadas de possibilidades, permitindo-nos, a partir desse reconhecimento, olhar pelos olhos que vão além da lente da câmera, das histórias únicas e estereotipadas. Ela nos leva ao encontro das nossas vivências, belezas e traumas. Essas, também vistas e sentidas no outro, nos nossos, e para além, pois compreendemos o corpo negro como um ser gigante e complexo, capaz de performar nossa existência no mundo em muitos caminhos. A fotografia surge como uma ferramenta de reconstrução de uma imagem feita na frente e atrás da câmera.

https://www.itaucultural.org.br/secoes/fotografia/fotografia-preta

Joelington Rios é um fotógrafo quilombola maranhense, nascido no território de Jamary dos Pretos, na cidade de Turiaçu. Criado no seio de sua comunidade ao longo de toda a vida, resolveu se mudar para o Rio de Janeiro para estudar Fotografia e dar continuidade aos trabalhos como fotógrafo, que desenvolvia entre os seus desde a adolescência. Uma história curiosa é que ele foi fotografado por Ricardo Teles, um fotógrafo documental que registrou a vida em diversos quilombos pelo Brasil no início do século. Aos 14 anos, Joelington descobriu essas fotos. Inclusive a sua própria, de quando tinha dois anos de idade. Esse encontro consigo mesmo através da Fotografia foi determinante para o que viria a seguir.

O trabalho de Joelington é mais um que se insere na tradição da Fotografia Humanista Brasileira, especialmente na escola teórica de João Roberto Ripper, cujas iniciativas na educação da Fotografia já formaram inúmeros fotógrafos documentais contemporâneos por todo o país.

Diante de uma cidade contraditória como o Rio de Janeiro, uma cidade partida que é toda junta e misturada, vivendo os descaminhos da maior parte da população carioca – entre os subúrbios, as favelas e os espaços de prestígio da Zona Sul – Joelington desenvolveu a série “O que Sustenta o Rio”, dando conta de explicitar a verdadeprofunda desta e de muitas metrópoles do mundo em que vivemos: a falta de reconhecimento social, por parte das elites privilegiadas pela desigualdade, daquelas pessoas que realmente fazem existir tudo o que está aí.

Na busca pela vida e pelas histórias de pessoas comuns, por mostrar rostos e projetar vozes, o trabalho de Joelington faz apontamentos incontornáveis para pensar a realidade contemporânea e vislumbrar saídas para os seus dilemas. Um olhar que respeita, admira, se inspira e reconhece que as vidas banais, das pessoas comuns, nos seus afazeres mundanos são parte do que há de extraordinário na aventura humana. Suas experiências, desejos e afetos, muitas vezes suprimidos, precisam estar na pauta do dia para a construção de um futuro digno para todos nós.

Gabriel da Silva Melo
Mestre em História Social, pós-graduado em Fotografia e Imagem, graduado em História e Estudos de Mídia.
 https://www.instagram.com/p/CIQka1ipB6W/?igshid=1ikfkeqhg8689

Muito interessante observar estes deslocamentos e infinitas facetas da fotografia nos meios e nas artes contemporâneas. Do mesmo modo que trabalhos tratam de questões individuais e auto-referenciados, também tocam no coletivo e levantam questões e vozes que precisam ser propagadas. Escritas luminosas que pautam questões fundamentais para a superação de estereótipos e abrem fissuras nos discursos dominantes e ainda eurocentrados.

Rodrigo Wanderley
Iluminado no Recôncavo Baiano (SAJ), Rodrigo cursou Jornalismo na UFBA e Fotografia no Labfoto / Facom. Fotógrafo, agitador cultural e arte-educador, vive atualmente no cerrado baiano, volta o olhar para o interior e faz parte do grupo de pesquisa Imagem Articulada (Facom).
http://www.labfoto.ufba.br/cursosrealizados/coluna-fora-do-eixo

A vivência e a história de Rivers são dois fatores essenciais para compreendermos o ponto de partida do seu trabalho. Sua última série “O que sustenta o Rio” provoca questionamentos sobre os habitantes da cidade e os corpos que vivem em deslocamento para poder sustentá-la.

Através de fotomontagem o artista explora os pontos turísticos da cidade, como o bondinho do Pão-de-açúcar e o Cristo Redentor sobre a cabeça de moradores da cidade com a intenção de refletirmos sobre a segregação e os privilégios inseridos na sociedade.

As imagens em preto e branco transparecem o drama e as dificuldades do cotidiano do carioca e a linha que divide a imagem representa o corte que o sistema faz dessas pessoas. O Rio de Janeiro apresentado por Rios nos faz repensar para quem essa cidade é maravilhosa.

https://www.instagram.com/p/CIS0xXgJHfs/?igshid=1up55ada0715w

‘O que sustenta o Rio” é uma série de fotomotagens em preto e branco. As imagens e o título da série se complementam harmoniosamente, pois sinto que o título é uma interrogação que ecoa internamente quando o lemos. Junto a ela, temos as fotomontagens que respondem criticamente essas interrogações. A pergunta que Rios nos introduz pelo título tem muitas respostas de acordo com os seus espectadores, mas o mesmo não deseja a pergunta, ele a responde concretizando uma luta, uma dor, uma estrutura que não muda, e sim se sustenta pelos mesmo modos coloniais.

Marcia Cristina da Silva Sousa é graduada em Artes Visuais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) e mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós- Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto. É integrante do NINFEIAS- Núcleo de Investigações Feministas (UFOP).

Por dentro da imagem, a criação, a imaginação por dentro da imaginação, a reorganização

“Fotografar a Cor; refletindo por dentro as camadas históricas e estruturais que envolvem a criação da minha própria imagem negra; tem sido uma potente forma de me reorganizar no tempo; nos espaços; e do lado de dentro do imaginário; até aqui; misturados a padrões e estigmas; peças lógicas ao capital; mas letais no atravessar dos meus sonhos e desejos; meus e de grande parte da massa humana; racializada; e sujeita aos próprios limites de sua experiência como imagem; na constante exposição e disposição de seus corpos; violentadas à troco de uma alta produtividade do plano racial.

No Brasil; a ampliação dessa produtividade; além de promover altíssimas taxas de acumulação primitiva e transferência de riquezas; garantiu ao colonizador o centro da normativa; da narrativa; da produção; e do fluxo imaginário estrutural com base na circulação dessas imagens sujeitas; à flor da pele negra e indígena; até hoje; suplantadas na ideia do outro; à superfície da história brasileira – de privilégios e interesses patriarcais.

Desta forma; reorganizar o corpo dentro dessas relações e sentidos imagéticos; têm potencializado importantes e inéditos processos de reflexão; e quebras imaginárias; sobretudo no campo das Artes Visuais brasileira; com o acesso dos nossos corpos; tidos sujeitos; mas políticos na ressignificação e dignificação das tantas margens imaginárias; tocadas nesta composição curatorial a partir de duas potentes narrativas de reorganização do fluxo imaginário; apresentadas em:

“O que sustenta o Rio”; por Joelington Rios, 2018; narrando sua jovem; e quilombola trajetória de migração do norte brasileiro para o sudeste do país; marcando a fotografia do seu corpo-espaço; no trânsito percorrido por seu imaginário entre o plano ideal; acerca dos sonhos com a chegada no Rio de Janeiro; e o concreto; a partir das tentativas de encaixes desse corpo-imagem; sobretudo, em ambientes e contextos postais da grande cidade; no despertar visual de uma série de alto-reflexos; e recriações imaginárias; na personificação da identidade dos corpos que de fato sustentam o peso e as cruzes da grande metrópole.”

Versão em Frances:

À l’intérieur de l’image, la création, l’imagination. À l’intérieur de l’imagination, le décloisonnement. Photographier la Couleur. Réfléchir par l’expérience intérieure aux couches historiques et structurelles qui traversent la création de ma propre image noir. Cela est une puissante manière de me réorganiser dans le temps, dans l’espace, et de l’intérieur de mon imaginaire. Jusqu’alors, cet imaginaire était mélangé aux modèles et stigmates, qui sont des pièces logiques et essentielles au capital, nuisible à mes rêves et désirs. Les miens, et d’une bonne partie de la masse humaine, racialisée, et soumise aux limites de sa propre expérience en tant qu’image. Dans cette constante exposition et disposition de ses corps violentés en échange d’une haute productivité du cadre racial. Au Brésil, l’augmentation de cette productivité a promu des énormes proportions d’accumulation et transfert de richesse. Il a aussi assuré au colonisateur le centre de la norme, le centre du récit, de la production, et du flux imaginaire structurel basé sur la circulation de ces images soumises. Sous la peau noir et indigène, jusqu’à aujourd’hui,ancrées sous le signe de l’autre, à la surface de l’histoire brésilienne – une histoire de privilèges et d’intérêts patriarcaux. Réorganiser le corps, dans ces rapports, dans ces sens d’images, potentialise d’importants processus de réflexion, voire inédits. Aussi des ruptures imaginaires. Notamment dans le champ des Arts Visuels brésilien. Avec l’accès de nos corps, encore soumis, mais politisés, car re-signifiés et enrichis de dignité grâce aux nombreuses marges imaginaires. On s’approche de celles-ci dans cette proposition curatoriale à partir de deux puissants récits de réorganisation du flux d’images : 1 – O que sustenta o Rio [ Ce qui soutient Rio], de Joelington Rios, 2018; en dressant un récit de sa jeune trajectoire quilombola de migration du nord brésilien au sud-est du pays, Joelington pose des marques sur la photographie de son corps-espace, autour des rêves avant son arrivée à Rio de Janeiro. L’œuvre traverse le chemin parcouru par son imaginaire entre le cadre idéal et le concret de la vie quotidienne, à partir de tentatives d’ancrage de son corps-image dans les paysages et contextes clichés des cartespostales de Rio. À l’éveil visuel d’une série de auto-reflets et récréations imaginaires, dans la personnification de l’identité des corps qui soutiennent le poids et les croix de la grande métropole

Marcela Bonfim
Artista e curadora. Economista, formada pela PUC–SP e especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

A serie o que sustenta o Rio tem uma relação com o tempo, com a história, com tudo. O trabalho abre muitas possibilidades, ele é denso, traz consigo a história do Brasil, do Brasil inteiro, apresentando o que nós somos.”

Cristina Adam Salgado Guimarães 
Pintora, desenhista, escultora, gravadora e professora. Em 1978, gradua-se em genética, na Faculdade de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estuda desenho e pintura com Roberto Magalhães (1940), Rubens Gerchman (1942-2008) e Astréia ElJaick (1941), entre 1977 e 1978; e litografia com Antônio Grosso, em 1981, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV/Parque Lage), no Rio de Janeiro. Conclui mestrado em comunicação e cultura na Escola de Comunicações da UFRJ. Desde 1993, atua como professora no Departamento de Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio). Também é professora assistente no curso de artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), desde 1997. Em 1991, recebe bolsa do British Council de Artista Residente no Yorkshire Sculpture Park, na Inglaterrra, onde expõe individualmente nesse mesmo ano. Em 1999 é contemplada com a bolsa RIOARTE para desenvolvimento de trabalho na área de escultura.

Além do que a vista pode alcançar Uma análise da série “O que sustenta o Rio”, de Joelington Rios O Rio de Janeiro está em questão no cenário artístico: embora muitos se esqueçam de olhar para além da Capital, alguns artistas têm criado estratégias para lembrar que o Rio é muito mais do que a vista do Cristo pode alcançar. Neste movimento, constroem-se perspectivas que encaram a realidade e escapam da visão do trauma, como feito por Joelington Rios, artista nascido no quilombo Jamary dos Pretos (MA, 1997), que provoca a estrutura da “cidade maravilhosa”.

Na série “O que sustenta o Rio”, ele constrói um corpo-cidade a partir de intervenções no retrato daqueles que sustentam anonimamente essa estrutura: conserva-se o rosto e opera a cabeça. Esta interessa ao artista por ser a fonte das emoções, do cansaço e, assim como para os Yorùbá, da identidade. A cabeça é o Orí, criação de Ajàlá, parte mais vital do corpo humano, compositor da personalidade humana e depositório do destino.

É pela cabeça que Joelington desvela o sujeito do título, dando fisionomia ao que é interrogativo. O artista desloca os símbolos do Cristo Redentor e Pão de Açúcar para construir uma outra imagem da cidade. Assim como a angulação da fotografia, contempla-se não mais a vista do topo que apresenta a Baía, mas o olhar de quem está embaixo.

Desta forma, Joelington transforma a estética da beleza e opulência para instigar um imaginário simbólico que observa seus contrastes sociais. Para uns, isto não é novidade, apenas representação de um cotidiano. Para outros, isto é a obrigação de enxergar o que não é seu espelho.

Ao mostrar os rostos, a fotografia se torna uma ferramenta de identidade dos grupos marginalizados, observados pelo artista como pessoas negras que sustentam a cidade. Assim, Joelington ao mesmo tempo age sobre o indivíduo e o coletivo. Ao alternar-se entre o retrato da pessoa e a paisagem da cidade, coletiviza-se um corpo, construindo a imagem de um corpo-cidade. Por outro lado, o olhar separado e atento a cada um também provoca uma individualização. Apesar disso, a imagem não recai sobre o clichê da fotografia de passe, aquela objetiva e supostamente neutra em 3×4. Com diferentes enquadramentos, Joelington não busca o documento de identidade, mas a singularidade diante da câmera.

Possuindo diferentes fundos, sua fotografia é em preto e branco, algo que desencadeia um jogo de poderes através das manipulações de luz e sombra. Como explicado por Mauricio Puls, em “Cor ou preto e branco? Razões de uma escolha”, enquanto a cor evidencia o real, o P&B afasta-se dele para delatar injustiças sociais e demandar uma intervenção do espectador, através da gradação da escala do cinza, que é composta por uma dialética entre opostos, isto é, entre a luz e a ausência dela. Além disso, a fotomontagem se alterna entre o retrato e a paisagem.

Como há um encaixe harmonioso entre o topo da cabeça e o símbolo carioca, temos a sensação de estar vendo um retrato, esquecendo-nos de uma linha horizontal que divide a imagem e traz outras incógnitas. O gênero retrato, de acordo com Puls, em “Retrato ou paisagem? Ou: Por que giramos a câmera?”, possui uma linha horizontal compacta, uma predominância do corpo sobre o fundo e um formato vertical que realça a figura, demandando uma leitura visual de cima para baixo.

Neste sentido, o encaixe harmonioso revela um caminho do olhar que se completa tal como costumamos fazer socialmente, ou seja, tal como percebemos simbolicamente as estruturas de poder que se mantêm hierarquicamente, quase como são construídos os prédios da mais alta escala financeira. O artista leva nos a essa leitura vertical descendente, saindo da cabeça para o tronco; do mais glamouroso à base, através de uma linha horizontal que junta as duas imagens e separa as realidades, no mesmo movimento ínfimo que acontece socialmente.

No entanto, essa mesma linha é o que nos faz perceber que há uma paisagem além do retrato. Sobre esse gênero, Puls explica que ela favorece a narrativa de ações, ao contrário da descrição de relações feita pelo retrato. Além disso, a paisagem também põe a imagem numa linha infinita para ser lida da esquerda para a direita.

Assim, percorremos de forma múltipla as imagens da série para primeiro compreender o sujeito do título e depois fabular sobre seu percurso, colocando-nos em estado de deambulação tal como Joelington anda pela cidade, atento a diferentes questões e latente aos questionamentos, como aponta Herkenhoff, em “Rio XXI – VertentesContemporâneas”.

Enquanto o Rio de Janeiro opera em nosso imaginário a partir de um simbólico glamouroso sustentado por fotografias que velam os indivíduos sob os pés do Cristo, Joelington desvela a face de quem é o alicerce do luxo, através do retrato, e reconhece o algoz através da clássica fotografia da paisagem carioca. No entanto, o retrato não se restringe ao humano e a paisagem à cidade, cria-se na verdade, um retrato único de um Rio de Janeiro alimentado por suas dialéticas sociais, um corpo-cidade.

Com a intervenção sobre o topo da cabeça e com as escalas de luz, ele nos traz uma leitura quase metalinguística sobre as estruturas de poder, sem precisar insistir no discurso do trauma, produzindo uma reflexão através da transformação do símbolo carioca.

Rayssa Veríssimo
Curadora, crítica e pesquisadora em formação no IART-UERJ. É editora executiva da revista acadêmica Concinnitas; bolsista de extensão do projeto A crítica, coordenado por Alexandre Sá, quem a orienta no projeto de iniciação científica A pesquisa em Artes Visuais nas revistas acadêmicas, do qual é pesquisadora voluntária.

Joelington Rios nasceu no Quilombo Jamary dos Pretos e se mudou para o Rio em 2017, onde vem ganhando projeção na cena artística.

Nascido no Quilombo Jamary dos Pretos, no Maranhão, Joelington Rios se mudou para o Rio em 2017 a convite do irmão mais velho. Na época, morou na Favela do Muzema, na Zona Oeste, e se matriculou no Colégio Estadual Pedro Álvares Cabral, em Copacabana, para concluir o ensino médio. Ao se deslocar entre esses dois pontos, chamavam a atenção dele a quantidade de pessoas nas ruas e as linhas que dividiam a cidade. “Passava pela Rocinha e pelo Vidigal e, depois, por Leblon e Ipanema. Era como se cruzasse portais.”

Ao se matricular num curso de fotografia no Centro, atravessou também a Zona Norte e entendeu de onde vinha aquela gente toda que via nas ruas da Zona Sul. “Existe um deslocamento agressivo, em que as pessoas vão até o outro lado para trabalhar. Foi quando comecei a pesquisa que chamo de ‘processos de sustentação’, em que noto como pessoas negras e faveladas carregam a cidade em suas cabeças.”

Nascia assim a série “O que sustenta o Rio”, em que o artista, hoje com 24 anos, mescla retratos de pessoas negras com imagens do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar. Bem recebidas, as obras do jovem já entraram para o acervo do Museu de Arte do Rio e foram apresentadas na última edição do Art Rio e SP Art.

E para quem foi fisgado pela produção, há novidades a caminho: “O que sustenta o Rio” vai se desdobrar em esculturas, enquanto ele prepara um novo projeto chamado “Entre rios e mocambos”, com uma pesquisa sobre corpos que deixam os quilombos para ganhar os centros urbanos. “Vou me desprender da minha zona de conforto, que é a fotografia”, adianta o artista, que pretende trabalhar com performances, instalações e tecidos, material pelo qual nutre carinho especial. “No quilombo, era comum dormirmos em redes. Então, os tecidos guardam muitas memórias.” Sorte de quem puder compartilhá-las.

Eduardo Vanini é Jornalista e colunista do jornal O globo e Revista ELA.